A Verdade

O violino cigano e outros contos de mulheres sábias

Encontrei esta história num livro do Malba Tahan, chamado Minha vida querida. Para quem não sabe. Malba Tahan (1895-1974) é um dos nossos maiores contadores de histórias. Ele escreveu mais de cem livros so­bre assuntos diversos. muitos de lendas e contos orientais. Sua própria vida até hoje está envolvida pelo mistério que povoa as narrativas tradicionais.. Para começar. seu nome verdadeiro era Júlio César de Mello e Souza,, e ele era brasileiro. Malba Tahan foi um personagem árabe inventado por ele, com local de nascimento, história pessoal e tudo. É esse personagem que as­sina quase todos os seus livros, e muita gente ainda pensa que ele existiu de verdade. Seu livro mais conhecido e traduzido em muitos outros países é O homem que calculava, fantástica contribuição à educação brasileira, em­bora tantos professores ainda não tenham percebido sua verdadeira importância. Mello e Souza era professor de matemática, e nesse livro fala dos principais conhecimentos matemáticos por meio de histórias fabulosa. Já
na década de 1930 ele conseguiu unir arte e ciência num livro para estu­dantes, coisa que ainda hoje em dia é muito difícil de se fazer.
Esse fascínio que o professor Mello e Souza tinha pelos árabes e pela cultura oriental está impregnado nos seus textos, e às vezes não sabemos quais histórias ele inventou e quais apenas reescreveu a partir de suas pes­quisas. A que apresento neste livro ele leu em algum luga, já que abaixo do título está escrito "lenda oriental", entre parênteses. Aliás, conheço uma versão judaica muito parecida. Desde que descobri esse conto, toda vez que narro alguém me pede uma cópia, e assim ele foi distribuído para muita gente, até fora do Brasil. Um professor espanhol o tem narrado na abertura de suas conferências em várias partes do mundo. Uma atriz do Rio de Janeiro, que também me ouviu contá-Io, resolveu incluí-Io em seu show de histórias. Em São Paulo, conheço uma contadora de histórias que sempre inicia suas narrações de um modo que ela inventou a partir do começo desse conto. Ela diz assim:
“Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!
Essa história vai começar!”
Por falar nisso, essa invocação que introduz a história não está escrita de maneira correta no livro do professor, embora Malba Tahan mostre conhecimento da língua árabe nas inúmeras citações que aparecem em toda sua obra. A grafia certa de “Allahur Akbar!” (que ele traduz como “ Deus é grande!”) é “Allah Hu Akbar!”(e a tradução é “Deus é o maior!”). Mas isso não tem a menor importância diante da beleza da história, que vou começar do mesmo modo como ela está em Malba Tahan.

Uma fábula sobre a fábula
Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!


Deus criou a mulher e junto com ela criou a fantasia. Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer um palácio por dentro e es­colheu o mais suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Al-Raschid. Vestiu seu corpo apenas com um véu transparente e pou­co depois chegou à porta do magnífico palácio. Assim que o guarda apa­receu e viu aquela bela mulher sem nenhuma roupa, ficou desconcer­tado e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com firmeza:
- Eu sou a Verdade e desejo encontrar-me com seu senhor, o sul­tão Haroun Al-Raschid.
O guarda entrou e foi falar com o grão-vizir. Inclinando-se diante dele, disse:
- Senhor, lá fora está uma mulher pedindo para falar com nosso sultão, mas ela só traz um véu completamente transparente cobrindo seu corpo.
- Quem é essa mulher? - perguntou o grão-vizir com viva curiosi­
dade.
- Ela disse que se chama Verdade, senhor - respondeu o guarda. O grão-vizir arregalou os olhos e quase gaguejou:
- O quê? A Verdade em nosso palácio? De jeito nenhum, isso eu não posso permitir. Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem ex­ceção. Pode mandar essa mulher embora, imediatamente.
O guarda voltou e transmitiu à Verdade a resposta do seu superior. A Verdade teve que ir embora, muito triste.
Acontece que...
Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. A Verdade não se deu por vencida e foi procurar roupas para vestir. Cobriu-se dos pés à cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda abriu a porta e encontrou aquela mu­lher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria.
Com voz severa ela respondeu:
- Sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor des­te palácio.
Lá se foi o guarda falar com o grão-vizir e, ajoelhando-se diante de­le, disse:
- Senhor, uma estranha mulher envolvida em vestes malcheiro­sas deseja falar com nosso sultão.
- Como é que ela se chama? - perguntou o grão-vizir.
- O nome dela é Acusação, Excelência.
O grão-vizir começou a tremer, morto de medo:
- Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Mande essa mulher embora imediatamente.
Outra vez a Verdade virou as costas e se foi tristemente pelo cami­nho. Ainda dessa vez ela não se deu por vencida.
E isso porque...
Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho.
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais lindas que pôde en­contrar: veludos e brocados, bordados com fios de todas as cores do arco-íris. Enfeitou-se com magníficos colares de pedras preciosas, anéis, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era.
E ela respondeu, com voz doce e melodiosa:
- Eu sou a Fábula e gostaria muito de encontrar-me, se possível, com o sultão deste palácio.
O chefe da guarda foi correndo falar com o grão-vizir, até esque­ceu de ajoelhar-se diante dele e foi logo dizendo:
- Senhor, está lá fora uma mulher tão linda, mas tão linda, que mais parece uma rainha. Ela deseja falar com nosso sultão.
Os olhos do grão-vizir brilharam:
- Como é que ela se chama?
- Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.
- O quê? - disse o grão-vizir, completamente encantado. – A Fábula quer entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a espe­rem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas.
As portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente, e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar.
Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhe­cer um grande palácio e encontrar-se com Haroun Al-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.

MACHADO, Regina (compilado por). O violino cigano e outros contos de mulheres sábias. São Paulo: Companhia das letras, 2004

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